Terá sido há mais de um ano, não consigo colocar já bem na linha do tempo, que me cruzei acidentalmente com um conjunto de fotografias que jamais me iriam sair da cabeça. Estavam expostas ao longo de uma escada de um prédio que nos conduz a um destes locais que ilustram bem a “trendynização” de Lisboa, a Casa Independente, no Bairro do Intendente, agora transformada num dos locais de restauração e bar mais famosos da noite da cidade. Ao fim de apenas duas ou três destas imagens, sentia-me já esmagado pela força e histórias nelas contidas. O autor, fui ver, era o Tiago Figueiredo, que não relacionei de imediato com um amigo de amigos de quem já ouvira falar. Nunca mais esqueci nem o nome, nem o poder daquelas imagens. Lembro-me da forma como me fizeram subir aqueles degraus como se tivesse sido hoje.
Deixem-me dizer-vos que há mundos que convivem connosco ao longo da vida, ainda que sem interferências nem cruzamentos de caminho. O Intendente contém em si um desses mundos. O velho bairro lisboeta, que nunca me foi estranho, perto de onde cresci e fiz escola e, portanto, sempre presente em percursos meus daqui para ali, carrega uma assinatura de longa data de prostituição e drogas. Hoje, à boleia de uma Lisboa mais cosmopolita e “trendy”, é um bairro de cara lavada que tenta esconder marcas de um passado não muito distante, mas que ainda oculta, debaixo da maquilhagem de uma capital lusa “cool”, um submundo que todos (cidadãos e poderes locais) sabemos que ainda existe, mas que fingimos que não. O Intendente é uma espécie de local a dois tempos, em que os dois tempos sabem um do outro, mas acordaram um convívio mútuo, em paz gerida e sem perguntas entre si. E é aqui que entra o Tiago Figueiredo, um fotógrafo que transpôs a barreira entre os dois tempos e que traz à superfície, para que o possamos ver, esse mundo escondido, mas apenas para quem não quer olhar.
“Viene y va”, este projeto fotográfico de que falo, é a materialização em imagens de um desafio que Tiago Figueiredo impôs a si próprio sobre a necessidade de nos transmitir visualmente o mundo da prostituição e toxicodependência. É um trabalho que vai ao encontro da definição exata de comunicação fotográfica que me proponho e que, por isso, não me fez descansar enquanto não satisfiz com o próprio fotógrafo um conjunto de curiosidades que só me fizeram despertar ainda mais curiosidades.
Coloquei as questões, o Tiago Figueiredo respondeu. Esta é a entrevista que nos fez prometer mutuamente novas conversas sobre fotografia e sobre fotografar.
Como surgiu a ideia de fazer este trabalho?
Em maio de 2017 foi-me proposto, a mim e a mais alguns fotógrafos, amadores e profissionais, fotografar no Intendente. Havia inúmeros temas possíveis ali, como há sempre em qualquer lugar. Há a reabilitação urbana, a gentrificação das classes altas que expulsam as
mais pobres, as transformações rápidas dos tecidos sociais e dos usos dos espaços públicos, as comunidades imigrantes, os talhos Halal. Nas deambulações de grupo que fizemos era recorrente referir-se o tema da toxicodependência e da prostituição como o touro na arena. Havia os becos a evitar, os bares onde era perigoso entrar, o cuidado a ter com as câmaras. Todos tínhamos medo, o medo normal de quem observa um submundo a que não pertence, com toda a má fama contruída ao longo dos anos, das notícias de jornal, das histórias assustadoras contadas em terceira mão, os conselhos avisados de quem nos sabe a passar por perto.
O meu ponto de partida foi assim um desafio de vaidade, de mostrar aos outros que eu conseguia descer à rua e fotografar aquilo que muitas das pessoas preferem nem olhar quando passam. Mas foi também, sobretudo, um desafio auto-imposto. Não admitir em mim a escolha de um tema que me interessasse menos apenas por medo de enfrentar um mundo mais complexo e violento. Seria muito mais fácil fotografar portas de edifícios devolutos, plantinhas a crescer em rachas de prédios em ruína, esquinas com lixo acumulado. Mas, mesmo reconhecendo o valor da poesia que a fotografia contemporânea veio acrescentar ao fotojornalismo, continuo a ser muito mais seduzido pela condição humana, olhos nos olhos. E se tiver algum receio das interações possíveis e necessárias, então terei de encontrar coragem para o vencer.
O meu ponto de partida foi assim um desafio de vaidade, de mostrar aos outros que eu conseguia descer à rua e fotografar aquilo que muitas das pessoas preferem nem olhar quando passam.
Estamos a falar de quanto tempo desde que surgiu o conceito até o trabalho estar concluído?
A primeira fase de trabalho durou cerca de uma semana. Mas depois voltei a fotografar, durante mais ou menos um mês, entre Agosto e Setembro. Não foram todos os dias, porque ia tendo outros trabalhos para fazer, estava a montar um outro livro meu, e para lá estar precisava de me embriagar bastante. Precisava de intervalos de alguns dias para recuperar.
E desde que surgiu o conceito ao disparo de arranque. Demorou muito?
Não tenho a certeza se o conceito já existe, mesmo um ano após a última fotografia do trabalho ter sido feita. A prostituição é um tema complexo, com várias dimensões que me interessam. Há as questões ligadas à sexualidade, o desejo, a luxúria, a violência, a aquisição, a posse e a entrega. Mas há depois outras que têm sido debatidas sobre exploração sexual, sobre direitos humanos, sobre liberdades e garantias, luta de classes, relações de Capital e Trabalho que me parecem estar ainda muito pouco claras para a maioria das pessoas. Para mim estão pouco claras ainda, certamente. Mas se não me considero um fotógrafo na acepção mais clássica do termo, com uma dedicação exclusiva a essa profissão, ainda me sinto menos um académico dedicado aos assuntos que elenquei. Tento ir gerindo acção e reflexão. Não sou preguiçoso na acção e gostava de não o ser na reflexão, mas sei que tenho amigos que pensam nestes assuntos muito melhor do que eu. Vamos à acção, portanto. No primeiro dia em que fui fotografar acabei a meter conversa com o dono de um dos bares da Rua dos Anjos. Um tipo que foi parar ao Intendente ainda adolescente e que passou a tarde a contar-me histórias saudosistas do bairro. Aquilo interessava-me, mas eu estava claramente a ganhar ali uma zona de conforto, um indivíduo conhecido e um espaço onde me pudesse abrigar e sentir seguro se houvesse hostilidade na rua. No dia seguinte, vi um rapaz a preparar um cachimbo de crack, sentado no degrau de uma porta fechada. Sentei-me ao lado dele e pedi-lhe para me explicar o que estava a fazer. Depois apresentámo-nos e ficámos umas duas horas a conversar. À noite reencontrei-o a caminho da Mouraria. Ia comprar uma dose. Perguntou se eu queria ir com ele. Acabei essa noite a fotografá-lo num vão de escada, com mais dois consumidores.
Não ando a fotografar toxicodependentes e mulheres prostituídas para mostrar um jardim zoológico à burguesia que evita ali passar com os filhos, ao mesmo tempo que defende “a prostituição como uma profissão como outra qualquer”.
Como foi a abordagem com estas pessoas para as fotografar? Foi fácil e houve abertura natural ou mostraram-se desconfiadas e renitentes e dificultaram o arranque?
Não gosto de trabalhar com fixers porque o processo para mim é tão ou mais importante do que o resultado final. Não ando a fotografar toxicodependentes e mulheres prostituídas para mostrar um jardim zoológico à burguesia que evita ali passar com os filhos, ao mesmo tempo que defende “a prostituição como uma profissão como outra qualquer”. Quero, em primeiro lugar, conhecer os mundos onde mergulho, quero conhecer aquelas pessoas, quero ser obrigado a lidar com os meus medos, com os meus preconceitos. Quero tirar os meus sapatos e perceber um pouco do que é estar ali. Nesse processo costumo passar muitas horas a conversar, a ganhar afinidade. São dois universos distintos. Eu não pertenço àquele lugar, sou olhado como um outsider. As horas de conversa servem para encontrar áreas comuns dos nossos universos, para conquistar confiança, para que as pessoas que eu quero fotografar saibam que não estou ali apenas para vampirizar a sua desgraça. Essa confiança – mútua, devo dizer – vem e vai, como o título do trabalho. Corriam muitos boatos sobre eu ser um polícia infiltrado, o que causava bastante hostilidade na rua. Nessas alturas desaparecia por uns dias e tentava reaproximar-me a seguir. Os boatos podem surgir de alguém estar mais chateado nessa tarde, ou com paranóias da ressaca, ou simplesmente porque existem, de facto, polícias infiltrados a trabalhar no local e é natural que aquelas pessoas, com a consciência da sua condição marginalizada, desconfiem de alguém que mostra um interesse continuado por um mundo que claramente não é o seu.
As horas de conversa servem para encontrar áreas comuns dos nossos universos, para conquistar confiança, para que as pessoas que eu quero fotografar saibam que não estou ali apenas para vampirizar a sua desgraça.
Geralmente, quase até sem querer, um fotógrafo cria uma expetativa ou um ideal antes de iniciar um projeto como este, quase imaginando as imagens antes de as conceber. Neste caso, o que depois encontraste e o resultado final afasta-se do que estavas à espera? Ou não criaste essa “visualização” inicial de todo?
Não tinha grandes expectativas visuais. Interessava-me mais documentar a realidade em vez de a romantizar ou tornar bela. Não queria que o meio de registo se sobrepusesse ao que ia vendo. Tenho influências, claro, mais conceptuais do que visuais, e fico aquém de todas elas. Agrada-me a forma como Antoine D’Agata ou Nan Goldin documentam as suas vidas. No caso do D’Agata, como participante, com um envolvimento que eu não seria capaz de ter. Assim, criou-se um vazio funcional nas minhas idas para o quarto com as mulheres, um problema visual e conceptual que eu nem sempre soube resolver. Pedia-lhes que me mostrassem os quartos, me contassem como era lá ir, lá estar, e fotografei-lhes os corpos nus. As idas aos quartos foram todas diferentes, o que é natural. Fui com pessoas diferentes, eu não estou sempre a mesma pessoa todos os dias, e a interação depende de vários factores, alguns mais ou menos premeditados, mas a maior parte deles muito ao sabor do fluxo. Estar quase sempre alcoolizado e alterado com vapores passivos das drogas consumidas por eles também me deixava muitas vezes sem a total consciência dos processos de trabalho. Algumas vezes, na manhã seguinte, quando via o que tinha fotografado durante a noite, não me lembrava de ali ter estado ou ter feito algumas daquelas fotografias.
Gostava de, um dia, conseguir ter uma abordagem que consiga fundir a curiosidade antropológica e social, e a fotografia contemporânea, como tem, por exemplo, Pieter Hugo. Sei que se o tivesse feito neste trabalho, a minha relação com o mundo envolvente seria mais desligada, mais fria e racional. Não era isso que procurava. Talvez numa futura aproximação ao mesmo tema eu consiga e queira ir por esse caminho.
Depois de veres o resultado final como um todo, depois de teres ouvido cada uma das histórias que ouviste durante o processo, terias feito alguma coisa diferente se começasses tudo do início?
Teria, sem dúvida, registado mais e melhor as histórias que ouvia. Teria tentado, talvez, filmar depoimentos. Penso que tinha já a confiança de muita gente para o fazer. Mas havia uma exposição colectiva de fotografia com data marcada, prazos de pós-produção, impressão e montagem a aproximar-se, muito cansaço físico e psicológico acumulado e era evidente para mim que eu não tinha digerido a experiência e o trabalho. Só passado um ano comecei a conseguir e a querer escrever sobre aquelas semanas e tenho recebido inúmeros testemunhos de pessoas que me dizem ter começado a pensar pela primeira vez na prostituição como exploração sexual por verem as histórias associadas às imagens.
Uma das mulheres que fotografei, uma portuguesa que tinha passado a infância e juventude em Espanha, tinha um caderno com poemas dela, escritos em Espanhol. Quando fui com ela para a pensão, pedi-lhe para me ler o poema que mais gostava. Chamava-se “Viene y Va”
Tens alguma mensagem concreta que gostasses que este teu trabalho passasse? Ou preferes que quem veja as tuas imagens interprete livremente a “história” que lá está contada? Se tens uma mensagem concreta, foi desse pressuposto que partiste de início, ou só a criaste durante o processo?
Se há coisa que para mim é secundária neste trabalho é que me digam que as fotografias são boas, que me façam críticas meramente técnicas. Isso não interessa para nada aqui. Estamos a falar de pessoas, das vidas destroçadas e é sobre o absurdo daquela possibilidade de existência que devemos falar.
O Jornal da Voz do Operário fez um artigo sobre prostituição em Outubro que vale muito a pena ler [ver aqui], com imensos dados relevantes sobre vários contextos europeus e relatos de situações terríveis. O jornalista falou comigo sobre este trabalho e pediu-me para utilizar algumas das imagens. Quando vi o artigo, com toda aquela informação, achei as imagens mais fortes do que nunca. Já agora, deixo mais um texto que todos devíamos ler na íntegra antes de opinar sobre este assunto: http://manifesto74.blogspot.com/2017/10/verdades-muito-incomodas-prostituidores.html
A minha perspectiva sobre a prostituição é agora bastante diferente da que tinha antes de ter feito este trabalho. Eu acreditava que muitas das prostitutas o eram por vontade própria. Penso que é um engano que tem servido de argumento para os defensores da legalização. Bem sei que eu fui fotografar a prostituição de rua, o fim de linha daquelas vidas. Muitas daquelas mulheres não sei se estão ainda vivas, doze meses depois de a ter fotografado. Quando as fotografei senti exactamente o mesmo, que talvez não estivessem vivas cinco ou seis meses depois. São quase todas, senão todas, toxicodependentes e a prostituição já serve apenas para conseguir o necessário para aliviar as dores da ressaca. Mas conheci uma mulher que tinha ido ali parar por um desespero diferente. Era mãe solteira, tinha dois empregos e perdeu um. Nas vésperas de não conseguir pagar o quarto onde vivia com o filho pequeno, desesperada, aceitou uma proposta sexual a troco de dinheiro. Quando a conheci, bebia para sentir menos nojo do que estava a fazer. Um dia, alguém lhe irá propor crack ou heroína. Se ela se entregar, o pagamento do quarto onde vive com o filho passará para segundo plano. Se ela não estivesse numa situação de fragilidade económica jamais teria passado por isto. Por isso, acho mais justo usar o termo ‘mulher prostituída’ do que ‘prostituta’. Ela não está ali porque quer. Está ali porque não consegue resolver o seu problema de outra forma e há quem se aproveite disso para a explorar durante uma hora.
Porquê “Viene y va”?
Uma das mulheres que fotografei, uma portuguesa que tinha passado a infância e juventude em Espanha, tinha um caderno com poemas dela, escritos em Espanhol. Quando fui com ela para a pensão, pedi-lhe para me ler o poema que mais gostava. Chamava-se “Viene y Va”. Percebi mais tarde que seria esse o título do trabalho, por servir no seu significado tantos actores e tantos papéis desta história. O meu incluído.
O meu trabalho tem tido um fio condutor que parte da mesma motivação, a curiosidade em saber o que está para lá da cortina. Interessa-me conhecer realidades que me são desconhecidas
O que é para ti a fotografia? O que costumas fotografar?
Vejo a fotografia como um meio para registar uma determinada realidade que se presta a um número infindável de usos distintos. Eu alterno a utilização da fotografia com vídeo e às vezes com escrita. Já fiz um áudio-documentário também, numa prisão em Leiria. O meio serve para transformar uma realidade que observo, que interpreto, e que reduzo a um objecto para que a possa levar a outras pessoas, mais longe. O meu trabalho tem tido um fio condutor que parte da mesma motivação, a curiosidade em saber o que está para lá da cortina. Interessa-me conhecer realidades que me são desconhecidas, seja os bastidores de uma grande orquestra, o interior de um estabelecimento prisional, um bairro social de realojamento, ou a relação dos hindus com a morte e a reencarnação.
Tens mais projetos conceptuais como este em mente?
Penso dar continuidade a este projecto, mas não necessariamente no Intendente. Interessa-me abordar outras classes sociais na prostituição, entender quem são os clientes, como funciona o proxenetismo. Não faço ideia se vou conseguir. Provavelmente não. Pode ser mais glamoroso, mas será também, certamente, mais perigoso do que no Intendente. Mexe com mais dinheiro e com mais poder.
Qual o teu percurso e onde é que começa a fotografia na tua vida?
Tive experiências diferentes ao longo da minha vida que acho que contribuem todas para o que sou agora. Quis ser jogador profissional de andebol, depois achei que teria bastante mais talento como treinador, acabei por me dedicar à programação de computadores, mas não durou muito tempo porque me apeteceu estudar piano. Acabei a dar aulas no Conservatório Nacional durante 6 anos, até que me despedi e frequentei um doutoramento em Geografia Humana porque um ano antes, em 2008, me comecei a interessar por filmar e construir documentários. Mas depois desse ano, com tanta solicitação profissional na área do vídeo, acabei por me dedicar em exclusividade a isso. A fotografia, mais a sério, surgiu por volta de 2013, quando percebi que precisava de melhorar o meu raciocínio visual.